Existe jejum no culto aos Orixás?

Foto: O axé dos alimentos - IA com matizes de Pai Paulo de Oxalá

O Candomblé resguarda o ẹ̀wọ̀ ou kizila alimentar

O jejum é uma prática ancestral, presente em diversas religiões, e não deve ser compreendido como exclusividade do cristianismo. Embora, no imaginário popular, o jejum seja frequentemente associado à quaresma cristã, ele também desempenha papéis fundamentais em tradições como o judaísmo, o islamismo e o budismo. Em cada uma dessas religiões, o jejum assume significados específicos — desde a purificação espiritual, passando pela disciplina do corpo, até a celebração de eventos sagrados ou históricos. O Ramadã, no Islã, é um dos exemplos mais emblemáticos, no qual se jejua do nascer ao pôr do sol por um mês inteiro, em um exercício de fé, autocontrole e solidariedade.

No entanto, quando falamos do Candomblé, a compreensão do jejum precisa ser analisada dentro da ritualística afro-brasileira. O Candomblé não adota o jejum total como prática espiritual comum. Não há, por exemplo, obrigações em que os adeptos fiquem horas ou dias inteiros sem comer ou beber, como ocorre em outras tradições. Ainda assim, isso não significa que não existam formas de abstinência ou restrições alimentares ligadas ao sagrado.

Durante os períodos de obrigações litúrgicas — como iniciações, obrigações de anos ou outros rituais de culto aos àwọn Òrìṣà (Orixás) — os àwọn ọmọ Òrìṣà (filhos de santo) seguem regras alimentares específicas, que têm por finalidade a purificação do corpo e a manutenção do equilíbrio espiritual. É comum, por exemplo, a proibição de carne vermelha, café e bebidas alcoólicas durante esses períodos. Tais restrições variam conforme o Òrìṣà regente de cada iniciado e o momento ritualístico vivido.

Além disso, há no Candomblé os chamados ẹ̀wọ̀ (ou quizilas), que são interditos muitas vezes determinados pelo Orí ou pelo próprio Òrìṣà ao qual a pessoa é ligada. Esses interditos alimentares não dizem respeito a um jejum ocasional, mas sim a uma abstinência permanente, carregada de profundo significado espiritual. Por exemplo, filhos de Ògún frequentemente são proibidos de comer siri e carne de galo. Já filhos de Òṣun devem evitar inhame assado, enquanto os filhos de Ṣàngó não devem consumir feijão branco ou peixe defumado.

Um dos rituais mais importantes dentro do Candomblé é o bọrí, que consiste em alimentar o Orí (a cabeça), fortalecendo-o com alimentos adequados à sua natureza. Esse ritual tem como finalidade dar equilíbrio e sustentação à pessoa para enfrentar os desafios do cotidiano. É importante lembrar que o bọrí só deve ser realizado mediante a orientação do jogo de búzios, respeitando o tempo e o axé de cada um, e as restrições alimentares de cada Orí.

Essas restrições e cuidados alimentares são formas de alinhar corpo e espírito com a energia do Òrìṣà, mantendo a harmonia com o axé. Assim, mesmo que o Candomblé não pratique o jejum nos moldes das religiões abraâmicas ou orientais, ele possui práticas de contenção e disciplina alimentar profundamente conectadas com o sagrado.

Diferentemente de tradições que utilizam o jejum como forma de purificação do corpo, o Candomblé enxerga o corpo como um templo do axé e um canal de expressão da força divina. A purificação, no Candomblé, ocorre por meio de banhos, ebós e rituais específicos para cada pessoa. Isso porque, na tradição, o Orixá toma o corpo por meio da incorporação. Por essa razão, as práticas alimentares no Candomblé não têm como objetivo a correção, mas sim o cuidado, o fortalecimento e o equilíbrio do ser.

Em suma, o jejum não é uma prática exclusiva do cristianismo, e a sua ausência no Candomblé não diminui a sua força espiritual. Pelo contrário: as restrições alimentares, os interditos e os cuidados com a comida são formas profundas de conexão com o divino. Trata-se de uma espiritualidade que nutre o corpo e a alma com equilíbrio, respeito e consciência.

Orí tí a bó ara tí a tọ́jú kì í jẹ́ kí ibi wọlé. (A cabeça cultuada e o corpo bem cuidado não permitem que o mal entre.)

Axé para todos!